História de Mowgli

CAPÍTULO I - Os Irmãos de Mowgli

Há muito tempo, na Índia, um enorme tigre percorria a selva em busca de alimento. Chegou à uma clareira onde se encontravam acampados um lenhador e sua família, e pensou no banquete que iria fazer com aquele homem que dormia, ou melhor ainda, aquele menino gordo, filho do lenhador, que ali se encontrava.
Apesar do tigre ser enorme e robusto, não era muito bravo e não estava disposto a enfrentar abertamente um homem armado.
Assim, ele deslizou em direção à fogueira, mas por não prestar atenção por onde andava, acabou machucando as patas, quando pisou nas brasas da fogueira. A dor o fez rugir e despertou a família acampada. O tigre, então, não teve outra saída senão escapar, furioso e mancando.
Também o lenhador e sua mulher ficaram apavorados e não repararam que o menino tinha resolvido andar pela noite, não imaginando o perigo.
Com o passo inseguro, foi subindo a colina e logo, sem saber como, entrou na cova de um enorme lobo, bravo, porém nobre e bondoso. Ao ver que o menino entrava sem medo na cova, e considerando que o tigre o queria devorar, o pai lobo pegou o menino e colocou entre seus lobinhos recém nascidos, que estavam brincando por perto da mãe loba, Raksha. Esta viu o pequeno filhote de homem juntar-se sem receio com seus lobinhos e ficou com ele.
Pouco tempo depois, Tabaqui, o chacal, procurou Shere-Khan e lhe disse: Senhor tigre, sei onde está o menino que tanto lhe dá apetite. Se o matares, podes me dar uma parte como prêmio, por lhe haver dito o esconderijo. Ele está naquela cova, abaixo da colina. O chacal é um animal nojento, que induz os outros animais a caçar e matar, contentando-se com as sobras que lhe deixam, por isso também era conhecido com lambe pratos.
Shere-Khan foi, em seguida, à entrada da cova, que era muito estreita, que só lhe permitia meter a cabeça na sua abertura. Tal circunstância fazia com que o lobo não o temesse, já que se encontrava dentro da cova.
O lobo advertiu o tigre que fosse buscar seu alimento em outro lugar, que ele não devia transgredir as leis da selva, que proíbe a um animal matar um ser humano, porque isto faz com que muitos homens se reúnam para capturar o assassino.
Shere-Khan rugiu com raiva e começou a lançar ameaças ao pai lobo. Raksha se uniu ao esposo para expulsar o tigre dali, pois ela havia se proposto a cuidar do menino, que um dia cresceria e teria condições de matar Shere-Khan.
O tigre se retirou e o menino permaneceu com os lobos e cresceu como membro da família.
Chamaram-lhe Mowgli, que significa “pequena rã”. Levaram-no à Roca do Conselho, onde se reuniam os lobos para apresentar seus filhotes para a Alcatéia. Na ocasião, o chefe da Alcatéia, o lobo Akelá, disse que, para que Mowgli fosse aceito, ele teria que ser recomendado por dois membros da floresta. De repente apareceu uma sombra: era um urso chamado Baloo, que se propôs a ensinar a Mowgli as leis da Jângal, as diferentes vozes dos animais e os diferentes tipos de comida.
Mais tarde apareceu a pantera negra, Bagheera, que ofereceu um touro gordo pela vida de Mowgli; esta ensinou-lhe a caçar, pescar e os truques da imensa Jângal. 
Mowgli, como pequeno lobo, tinha muito que aprender.

CAPÍTULO II - As Caçadas de Kaa

Mowgli, o menino criado por lobos, passou a fazer parte da Alcatéia, e portanto era um grande amigo dos animais da floresta.
Uma vez, ele disse a Baloo e Bagheera que gostava doa dos Bander-Logs. Eles não têm leis como os lobos, somente falam para os outros eu possuem uma; se consideram muito inteligentes e espertos, mas nunca fazem nada, apenas falam muito, em vez de trabalhar. Nada na selva tem a ver com eles: são covardes e sobem nas árvores para atirar cocos e galhos nos animais feridos. Sempre estão pensando em criar suas leis, porém se esquecem com facilidade de seus interesses.
Um dia, os Bander-Logs seqüestraram Mowgli. Eles haviam estado observando-o por entre as árvores, enquanto construía uma casa pequena com galhos e folhas para abrigar-se. Pensaram que seria muito bom aprender a construir casas como Mowgli. Enquanto ele dormia, se arrastaram até perto deles e os mais fortes pegaram-no pelos braços, subiram até o topo das árvores e correram quilômetros e quilômetros com ele, saltando por entre as árvores. Às vezes saltavam com Mowgli por espaços abertos, de uma árvore à outra. Assim, com saltos e gritos, a tribo inteira de Bander-Logs andou um largo trecho, levando Mowgli prisioneiro.
Enquanto “voava”, Mowgli ia pedindo auxílio aos animais amigos. Acima, no céu, Chill, o pássaro milhano, se deu conta do que passava e , observando para onde o levavam, avisou Baloo e Bagheera, que entraram floresta adentro o mais rápido que puderam, na direção em que os macacos haviam levado o menino. Porém, Baloo já estava velho e não podia nadar tão depressa quanto os macacos.
No caminho, encontraram Kaa, a grande serpente píton, de nove metros de comprimento. Esta, de bons instintos, porém muito astuciosa, desejava ardentemente comer os Bander-Logs e com facilidade foi convencida a ajudar; além de tudo, Bagheera lhe contou que os macacos a haviam chamado de “Lombriga-amaela-da-terra-sem-pés”. A velha Kaa não era muito de se irritar, mas esta falta de respeito a fez arder de raiva e quando Baloo lhe perguntou se ela iria ajudar a salvar Mowgli dos macacos, ela respondeu que sim!
Kaa, Baloo e Bagheera dirigiram-se para uma cidade em ruínas, onde os macacos viviam e era lá que eles representavam a comédia em que fingiam que eram homens.
Bagheera, rápida, se adiantou e quando viu os macacos reunidos ao redor de Mowgli, lançouse sobre eles e os atacou sem pensar, mas havia milhares deles! Eles então pularam em cima de Bagheera e dominaram-na. Depois, a machucaram muito, e ela então foi obrigada a refugiar-se em uma peça que continha muita água, enquanto Baloo os atacava também.
Para assegurar-se de que Mowgli não lhes seria tomado, os macacos o colocaram em uma pequena casa de verão, subiram até o teto e deixaram-no cair em um lugar de onde não podia escapar, pois o local era cheio de cobras. Mas ele imediatamente falou a SENHA que usam as cobras na selva: “Somos do mesmo sangue, tu e eu, irmãozinho”, e desta forma as converteu em suas amigas.
Baloo estava passando muito trabalho, quando chegou a velha Kaa que, utilizando todas as suas forças se lançou sobre o bando de macacos dando golpes com sua dura cabeça para direita e para a esquerda, difundindo terror com seus assovios.Os macacos sabem que sua carne é mais gostosa e que as serpentes gostam. Assim, cheios de terror, correram!
Enquanto isso, Baloo e Kaa dirigiram-se para salvar Bagheera e depois foi Kaa quem conseguiu resgatar Mowgli, fazendo com sua cabeça um enorme buraco na parede por onde Mowgli pode escapar. Kaa imediatamente começo a dar voltas em um campo aberto, enquanto assoviava.
Os macacos que estavam no topo das árvores perceberam que ela estava dançando a “Dança da Fome”. Conforme se enroscava e dava voltas sobre si mesma, os macacos não podiam resistir à tentação de observá-la , a tal ponto que perderam o domínio sobre si mesmos. Então ela ordenou que eles a cercassem, o que foram fazendo gradualmente, até que ficaram tão perto, que ela pode pegar um a um para depois comê-los e satisfazer sua fome.
Mowgli, Bagheera e Baloo voltaram para casa com a promessa do menino de que passaria a ouvir os conselhos de Baloo, para não se meter mais em encrencas.

CAPÍTULO III -  Como Apareceu o Medo

Certa vez, no inverno, quando as chuvas deram de falhar, e a Jângal, cada dia que passava, ficava mais seca, os animais estavam morrendo; o único que engodava era Chill, que comia carniça, e como tinha carniça!
O Waingunga era a única reserva de água, a correr por entre a Jângal. E quando Hathi, o elefante selvagem, viu no centro do rio uma rocha, ele reconheceu que era a Rocha da Paz. Ergueu então a tromba e proclamou a Trégua das Águas, como seu pai fez há cinqüenta anos arás.
Segundo a Lei da Jângal, é proibido caçar nas horas de matar a sede, pois os animais vinham magros de fome ao bebedouro. Todos se reuniram lá para falar da seca.
Certa vez Shere-Khan chegou no bebedouro para molhar a face e comentou que tinha matado, não fazia uma hora, um homem. Hathi perguntou a Shere-Khan se ele havia matado o homem por gosto. Shere Khan respondeu:
- Sim. Era meu direito e estava em minha noite de caça.
- Sim eu sei, disse Hathi. Se já acabou, então pode ir embora.
Mowgli perguntou então:
- Que direito é esse que Shere-Khan falou, Hathi?
- Trata-se de uma história muito antiga, mais antiga que a velha Jângal.
Hati pediu silêncio para contar a história.
- No começo da Jângal, mas ninguém sabe quando foi, nós convivíamos harmoniosamente, sem que tivesse medo um do outro. Não existia seca naquele tempo, todos os animais alimentavam-se de folhas flores, frutas e cascas.
O Senhor da Jângal era Tha, o Primeiro dos Elefantes. Foi a tromba de Tha que tirara a Jângal do fundo das águas, com as patas, se formaram lagos. Deste modo se formou a Jângal.
Ocupado em criar novas florestas e abrir novos rios, Tha fez o Primeiro dos Tigres, o mestre e o juiz da Jângal, para que se existisse alguma queixa, fosse feita ao primeiro dos tigres, já que Tha não tinha tempo.
Naquele tempo, o primeiro dos tigres comia ervas e frutas como os demais, ele era grande, como eu sou, e belo de cor; tinha a cor das trepadeiras amarelas, nenhuma listra ou pinta manchava sua pelagem macia. Todos os animais chegavam perto dele sem medo, sua palavra era lei.
Certa noite, houve disputa entre dois gamos, pelas pastagens, que se resolveu a coices e chifradas. Os dois foram à presença do primeiro dos tigres, que durante a conversa, um dos gamos o feriu com um dos chifres e, esquecido de que era o juiz, o tigre deu um munhecaço, quebrando o pescoço do gamo.
Até aquela noite, ninguém havia morrido.
Nós desconhecíamos a morte e o Primeiro dos Tigres, vendo o que fez, sentiu-se alucinado pelo cheiro de sangue, correu e mergulhou no mato. Ficando sem juiz, os animais passaram a disputar tudo, ficando a Jângal abandonada. Quando Tha chegou, não disseram-lhe o que havia acontecido, mas Tha percebeu o corpo do gamo. Ninguém respondeu, estavam todos doidos pelo cheiro do sangue.
Há então deu ordem aos cipós e árvores de galhos baixos que margeiam as trilhas para que marcassem o matador, de modo que pudesse ser sempre reconhecido. Tha perguntou a todos quem queria ser o chefe do povo, o macaco gris saltou dos galhos onde vivia e respondeu que seria o chefe; mas o macaco deu de coçar-se e pular. Quando Tha voltou de novo, encontrou o macaco Gris de cabeça para baixo, pendurado pelo rabo num galho, fazendo macaquices para o povo da Jângal, que começou a gozar dele. Tinha assim desaparecido a lei, sendo substituída pela conversa tola e sem sentido.
Então, Tha nos chamou e disse:
- O primeiro chefe que eu dei a vocês, trouxe a morte para a Jângal. É tempo de vocês terem uma lei que não seja quebrada. Será ela o medo. Quando encontrarem o medo, verão que é ele realmente o vosso chefe.
Então o povo da Jângal perguntou:
- Que é o medo?
E Tha respondeu:
- Vocês aprenderão em breve. Procurem!
Então o povo da Jângal espalhou-se à procura do medo.
Certo dia os búfalos...
- Uh! Interrompeu Mysa, o chefe da manada de búfalos.
- Sim, Mysa, os antepassados dos teus búfalos de hoje, apareceram com a notícia de que no meio da floresta, lá em uma gruta, morava uma criatura sem pelo no corpo e que andava de pé.
O povo da Jângal então foi até à gruta, e encontrou o medo. Quando nos viu chegar, gritou, e sua voz nos fez ficar com o medo que até hoje nos causa, sempre que o ouvimos.
Quando o Primeiro dos Tigres ficou sabendo que o povo da Jângal tinha encontrado o medo lá naquela gruta, disse:
- Irei ver essa coisa nua e lhe quebrarei o pescoço.
Disse e fez. Andou toda a noite à procura da gruta e foi então que as árvores e cipós do caminho atentos às ordens de Tha, o riscaram de listras nas costas, na testa e no focinho. Sempre que esbarrava num galho ou cipó, ficava com uma listra ou pinta nova em sua pelagem amarela. E essas marcas até hoje seus descendentes as usam.
Quando ele chegou na gruta, o pelado apontou para ele e disse:
- O manchado aí vem.
O primeiro dos tigres teve medo do pelado e voltou, miando, para o mato. Tão alto miava o tigre, que Tha o ouviu e perguntou:
- O que aconteceu?
- Achei o medo, e ele me expulsou e me chamou de sujo e fiquei mal visto pelo povo da Jângal.
- E por quê?
- Porque eu estava todo listrado de lama!
- Então vá lavar-se no rio, para que tuas listras saiam.
Então, o tigre se banhou no rio para tirar as manchas, mas nenhuma listra saiu.
- O que fiz para ficar assim? Perguntou o tigre.
- Você matou um gamo e espalhou o medo em nosso povo.
Tha então mandou o tigre embora, mas antes disse para o tigre que por uma noite, a cada ano, quando ele encontrar o pelado, cujo nome é Homem, não terá medo, mas o pelado sim.
Logo depois, ele foi beber água, viu refletir suas listras e lembrou que o pelado tinha lhe chamado de sujo, então percorreu a selva, esperando o dia que Tha lhe prometeu. Ele esperou a lua e foi atrás do pelado, e lhe quebrou a espinha com um munhecaço, pensando assim que tinha matado o medo. Tha logo ficou sabendo da morte do pelado e foi arás do tigre e disse para ele que havia muitos pelados. Com essa morte, ninguém mais iria arás dele, nem dormiriam perto dele.
Quando amanheceu, apareceu na boca da gruta outro pelado, e viu o que o tigre fez, e pegou uma enorme lança, com uma ponta afiada, atirou no tigre, que correu até que quebrasse a vara. Os filhos da Jângal ficaram sabendo que os pelados poderiam matar de longe e ficaram com medo do Homem. Foi o primeiro dos tigres que ensinou o homem a matar.
Hathi mergulhou a tromba na água, dando assim por encerrada a história.
Mas Mowgli perguntou a Baloo por que os tigres alimentam-se de carne hoje, se antigamente eles comiam apenas folhas de árvores e ervas. O que foi que o levou a comer carne? E Baloo respondeu:
- Porque ele quebrou apenas o pescoço do gamo, não o comeu, mas as árvores e cipós o haviam marcado.Por isso, o tigre não alimentou-se mais de folhas e ervas rasteiras.
-Até você sabia dessa história, Baloo? Perguntou Mowgli.
- Sim, eu sei de muitas histórias, Mowgli! 

CAPÍTULO IV - A Embriaguês da Primavera

Dois anos depois da morte de Akelá na grande luta com os dholes, Mowgly completou 17 anos. Parecia mais velho porque o intenso exercício, a forte alimentação e os banhos frequentes lhe haviam dado força e desenvolvimento acima da idade. O povo da Jângal, que já o temia pela astúcia, passou a temê-lo pela força.
Um dia estavam Mowgly e Bagheera na encosta do morro frente a Waiganga. Era o fim do inverno. Sentado, Mowgly contemplava o vale semi-desperto. Um pássaro lá embaixo trinava as primeiras notas, ainda incertas, do canto que iria entoar na primavera. Embora esse canto ainda fosse só um ensaio, a pantera reconheceu-o.
- Eu não disse que o tempo das falas novas vem próximo? Relembrou ela. É Ferao, o pica-pau escarlate. Ele não esqueceu. Ora, eu também preciso recordar o meu canto e pôs- se a ronronar para si própria.
– Não há nenhuma caçada para hoje, observou mowgly.
– Irmãozinho, estarão teus 2 ouvidos tapados? Isto que canto não é palavra de caça, mas canto que quero ter pronto para a primavera.
– Tinha me esquecido. Reconheço muito bem a chegada das falas novas, estação em que tu e os outros correreis para longe, deixando-me sozinho, respondeu mowgly queixoso. Vós debandais e eu, Senhor da Jângal, tenho que viver sozinho.
Até aquele ano Mowgly se deleitara com o retorno das estações. Era ele quem, antes de todos, descobria o primeiro olho da primavera e as primeiras nuvens da estação. Sua voz era ouvida em todos os lugares, a fazer coro com os outros animais. Como para todos os outros, a primavera era para ele o tempo de correr, só pelo prazer de correr do anoitecer ao amanhecer e voltar ofegante, rindo-se, cheio de flores raras.
O povo da Jângal está constantemente ocupado na primavera; Mowgly via-os sempre rosnando, uivando, gritando, piando , silvando, conforme a espécie de cada um. Suas vozes mostram-se diferentes então; e por isso a primavera no Jângal é chamada o Tempo das falas Novas.
Mas naquela estação o humor de Mowgly estava mudado, quando tentava responder algum animal as palavras embaraçavam-se-lhe nos dentes, uma sensação de pura infelicidade o invadiu da cabeça aos pés.
– Comi bem , disse o rapaz a si próprio, bebi bem, minha garganta não arde nem aperta.
Mas tenho o estômago pesado e tratei mal a Bagheera e outros. Ora me sinto quente, ora frio; ora nem quente nem frio, mas apenas furioso contra não sei que. Ah-ah! É tempo de dar minha carreira. Esta noite cruzarei as montanhas; sim darei uma corrida de primavera até os pantanais do norte, ida e volta. De muito que caço sem esforço, isto me enerva.
Como não encontrou nenhum de seus irmãos lobos para correrem juntos, Mowgly saiu sozinho, aborrecido por isso.
Assim correu ele aquela noite, ás vezes gritando, ás vezes cantando; correu até que o cheiro das flores o visou que estava próximo dos pantanais e longe, muito longe do seu Jângal. Avistou uma estrela bem baixa e olhou pelo canudo da mão.
– Pelo touro que me comprou é a flor vermelha, a flor vermelha que deixei pra trás de mim quando me mudei para a alcatéia de Seoni. Agora, que a vejo de novo, dou por fim a minha corrida.
Mowgly correu descuidadamente pela relva úmida até alcançar a cabana de onde vinha a luz.
Uns cães latiram. Ele emitiu um profundo uivo de lobo que fez os cães calarem. A porta da cabana abriu-se e uma mulher espiou no escuro. Dentro, uma criança começou a chorar.
– Dorme, disse a mulher. Foi algum chacal que uivou para os cães.
Escondido nos arbustos, mowgly tremeu. Aquela voz, ele a conhecia. Mas para melhor se certificar, gritou baixinho, surpreso de ver como a língua dos homens lhe vinha fácil:
– Messua! Messua!
– Quem chama? A mulher indagou com voz trêmula.
– Nathoo! Respondeu Mowgly, pois fora esse o nome que lhe dera Messua quando o encontrou pela 1ª vez.
– Vem meu filho.
Ela o acolheu, deu-lhe de beber e comer e apresentou-lhe o irmãozinho. Cansado Mowlgy deitou-se e mergulhou em profundo sono. Quando acordou Messua sorriu e serviu-lhe outra refeição. Nesse instante irmão Gris chamou-o lá fora. Era hora de ir.Messua pôs-se ao lado de Mowgly humildemente ele era realmente um Deus da Jângal, mas quando o viu abrir a porta para sair, a mãe que havia dentro dela a fez abraça-lo várias vezes.
– Volta outra vez, repetiu Messua. De dia ou de noite, esta casa estará sempre de porta aberta pra ti.
A garganta de Mowgly aperto-se. Sua voz parecia como que arrancada à força quando respondeu: Sim, voltarei!
- E agora, murmurou depois que saiu, tenho minhas contas a ajustar contigo, irmãi Gris. Por que vós 4 não viestes quando vos chamei, há tanto tempo?
– Tanto tempo? Foi ontem, eu... nós estávamos cantando no Jângal os novos cantos, porque o tempo das falas novas é chegado. Não te lembras?
- É verdade, é verdade...
- E logo depois dos cantos, segui teu rastro. Passei à frente dos outros e vim até aqui. Mas, ó irmãozinho, que te aconteceu que estás de novo comendo e dormindo na alcatéia dos homens?
- Se tivesses vindo quando te chamei, isto nunca se daria, respondeu Mowgly, apressando o passo.
- E agora como será? - Perguntou o lobo.
Mowgly ia responder, quando uma mocinha trajada de branco surgiu no caminho que levava à aldeia. Mowgly segui-a com os olhos por entre os talos de milho até que seu vulto se perdeu ao longe.
- E agora? Agora não sei... respondeu finalmente, suspirando. Porque não vieste quando te chamei?
- Nós te seguimos - murmurou o lobo. Nó te seguimos sempre, exceto no tempo das falas novas.
- E me seguireis na alcatéia dos homens também?
- Não o fizemos na noite em que os de Seoni te expulsaram do bando? Quem te despertou quando dormias nas roças?
- Sim, mas me seguireis de novo
– Não te segui eu esta noite?
– Mas me seguireis sempre, sempre,sempre e outra vez, outra vez e outra vez, irmão Gris?
O lobo calou-se por uns instante. Quando abriu a boca foi para dizer a si próprio:
- A pantera negra falou verdade...
E disse que...
... que o homem volta sempre para o homem, no fim Raksha , nossa mãe, também disse.
E Akelá também na noite do ataque dos Dholes, acrescentou Mowgly.
E também Kaa, a serpente da rocha, que possui mais sabedoria do que todos nós.
- E tu irmão gris, que disses tu?
Eles já te expulsaram uma vez. Eles te feriram nos lábios com pedra. Eles mandaram Buldeo matar-te. Eles queriam lançar-te na flor vermelha. Tu e não eu , disseste que eles eram muito maus e insensatos. Tu, e não eu, eu sigo meu próprio povo, foste admitido no Jângal por causa deles. Tu, não eu compuseste cantos contra eles, ainda mais amargos que os nossos contra cães vermelhos.
– Pára! Que estás dizendo?
O lobo Gris ficou uns instante calado, depois falou:
– Filhote de homem, senhor da Jângal, filho de Raksha, meu irmão de caverna: embora eu fraqueie nas primaveras, o teu caminho é o meu caminho, o teu antro é o meu antro, a tua caça é a minha caça e a tua luta de morte é a minha luta de morte. Falo por mi e pelos outros 3. Mas que irás dizer ao Jângal?
- Bem pensado. Vai e reune o conselho na Roca, que quero dizer a todos o que tenho no coração, mas talvez não compareçam: no tempo das falas novas todos esquecem de mim...
– Só isso? - Perguntou o lobo Gris, pondo-se em marcha.
Em qualquer outra estação aquela novidade teria reunido na Roca o povo inteiro do Jângal; mas era o tempo das falas novas e andavam todos dispersos, caçando, matando. Para um e para outro, corria o lobo Gris com a nova:
– O senhor do Jângal volta para os homens! Vamos à Roca do Conselho!
E ruidosos e felizes os animais respondiam:
– Retornará nos calores de verão. Vem cantar conosco.
– Mas o senhor do Jângal volta para os homens, repetia.
– E daí! O tempo das falas novas perde alguma coisa com isso?
Desse modo, quando Mowgly, de coração pesado chegou à Roca, onde anos atrás fora trazido ao conselho, apenas encontrou lobos irmãos, Baloo, que já estava quase cego e a pesada Kaa enrodilhada sobre a pedra de Akelá, ainda vaga.
– Termina então aqui o teu caminho, homenzinho? Perguntou a serpente, logo que Mowgly se sentou. Grita o teu grito! Somos do mesmo sangue, eu e tu, homens e serpentes!
– Porque não morri nas garras dos dholes, gemeu Mowgly. Minha força esvaiu- se e não foi veneno. Dia e noite ouço um passo duplo no meu caminho. Quando volto a cabeça sinto que alguém se esconde atrás de mim. Procuro por toda parte atrás dos troncos, atrás das pedras, e não encontro ninguém. Chamo e não tenho resposta, mas sinto que alguém me ouve e se guarda de responder. Se me deito, não consigo descanso. Corria corrida da primavera e não sosseguei. Banho-me e não me refresco. O caçar enfada-me. A flor vermelha está a ferver em meu sangue. Meus ossos viraram água. Não sei o que...
– Para que falar? Observou Baloo. Akelá disse que Mowgly levaria Mowgly para a alcatéia dos homens outra vez. Também eu o disse, mas que ouve Baloo? Bagheera, onde está Bagheera esta noite? Ela também sabe disso, é da lei.
– Quando nos encontramos nas Tocas Frias, homenzinho, eu já o sabia. - acrescentou Kaa... - Homem vai para homens, embora o Jângal não o expulse.
– A Jângal não me expulsa, então? Sussurou Mowgly.
O irmão Gris e os outros 3 uivaram furiosamente:
– Enquanto vivermos ninguém ousará...
Mas Baloo interrompeu:
– Eu ensinei-lhe a lei, disse. A mim cabe falar, embora meus olhos não vejam a pedra que está perto, enxergam tudo que está longe. Rãzinha, toma teu trilho, faz teu ninho com esposa do teu próprio sangue e de tua raça; mas quando necessitares pata, olho ou dente, lembra-te, senhor do Jângal, que todo o Jângal acudirá o teu apelo.
– Também o Jângal médio estará contigo , disse Kaa. Falo por um povo muito numeroso.
– Ai de mim! Exclamou Mowgly em soluços. Eu não sei o que sei! Não vou, não vou, não quero ir, mas sinto-me arrastado por ambos os pés. Como poderei deixar de viver estas noites do Jângal?
– Ergue os olhos, irmãozinho, disse Baloo. Não há mal nisso. Quando o mel está comido, abandonamos os favos.
– Depois que soltamos a pele velha, não podemos vestir de novo, ajuntou Kaa. É da lei.
– Ouve querido de todos nós, disse Ballo. Não há aqui, nem haverá, palavra que te detenha entre nós. Ergue os olhos! Quem ousará interpelar o senhor do Jângal? Eu te vi brincando no pedregulho, lá embaixo, quando não passava de pequenina rã; e Bagheera, que te comprou pelo preço de um touro gordo, viu-te também. Daquela noite do “ Olhai, olhai bem ó lobos!”, só ela e eu restamos de testemunhas; Raksha, tua mãe adotiva, está morta, teu pai adotivo está morto; a velha alcatéia daquele tempo não existe; tu sabes o fim que teve Shere-Kahn e viste Akelá acabar entre os dholes, que nos teriam destruído se não fosses tu. Só vejo ossos, velhos ossos. Hoje não é o filhote de homem que pede licença a sua alctéia, é o senhor do Jângal que resolve mudar de caminho. Quem pedirá contas ao homem do que ele quer ou faz?
– Bagheera e o touro que me comprou! Respondeu Mowgly. Eu jamais...
Suas palavras foram interrompidas por um rumor nas moitas próximas. Lépida, forte e terrível como sempre, Bagheera acabava de saltar para dentro do grupo.
– Pelo que acabas de dizer - disse ela, estirando o corpo - não vim. Andei em caçada longa, mas agora ele está morto na relva, um touro de 2 anos, o touro que te vai libertar, irmãozinho!
Todas as dívidas assim ficam pagas. Além disso, minha palavara é a palavra de Baloo.
A pantera lambeu os pés de Mowgly.
– Lembra-te que Bagheera te ama, disse ela por fim, retirando-se num salto. No sopé da colina entreparou e gritou: Boas caçadas em teu novo caminho, senhor da Jângal! Lembra-te sempre que Bagheera te ama.
– Tu a ouviste, murmurou Baloo. Nada mais há a dizer. Vai agora, mas antes vem a mim. Vem a mim, ó sábia rãzinha!
– É difícil arrancar a pele, murmurou Kaa, enquanto Mowgly rompia em soluços com a cabeça junto ao coração de urso cego, que tentava lamber-lhe os pés.
– As estrelas desmaiam, concluiu o lobo Gris, de olhos erguidos para oa céu. Onde me aninharei doravante? Porque agora os caminhos são novos...